loader image

Os jesuítas ante os desafios de Venezuela

outubro 6, 2016

Queridos irmãos jesuítas e leigos
A gravidade da atual situação venezuelana exige de nós um discernimento permanente diante de nossa vocação de serviço ao Povo de Deus. Nosso compromisso com as pessoas em muitas comunidades populares, com jovens e profissionais, com organizações sociais, nosso trabalho educativo e nosso serviço pastoral, nos submerge em muitas angústias que o povo venezuelano sofre. Companheiros de Jesus de Nazaré, ao serviço de sua missão, sentimo-nos convocados à análise do momento que vivemos, e a dar nossa melhor colaboração para a transformação das estruturas de pecado e morte que golpeiam nosso povo. Com este espírito, tendo escutado as inquietações de muitos companheiros, e seguindo as diretrizes do Pe. Provincial, convoquei em virtude de meu serviço de vice provincial uma “Consulta ampliada” para a análise da situação atual do país, e de suas exigências para nossa missão apostólica. Para isso, a consulta canônica da Província e a Equipe Apostólica nos reunimos em 30 de setembro passado. Esta carta aprovada pelo Provincial expressa a reflexão e os lineamentos que cremos deverão orientar nossa ação neste momento vivido pelo país.    

O momento presente
O momento presente é um tempo de tragédia para Venezuela. O país sofre problemas desconhecidos pelas últimas gerações de venezuelanos. A maioria das pessoas vive com grande esforço em uma situação de sobrevivência, em choque, e perdendo todo sentido de normalidade cotidiana.
Vive-se com a sensação de raiva e frustração. O empobrecimento é massivo. A escassez e a incapacidade de adquirir o pouco que as redes comerciais distribuem se traduz em fome e miséria para a grande maioria. A insegurança cresce com uma violência disseminada e impune. O autoritarismo político e a hegemonia da comunicação pretendem impor um mundo demagógico e falso. O tecido social se desfaz e a institucionalidade é sinônimo de corrupção, opacidade e impunidade. Organizações internacionais e muitos países do planeta falam em crise humanitária na Venezuela e violação de direitos humanos elementares. As pesquisas assinalam que 94% da população acha que o país está muito mal, e que mais de 70% é favorável ao “impeachment” (“Revocatorio”) do presidente da república.
Venezuela é uma panela de pressão com a válvula tapada. A situação não só é insustentável, é insuportável. Os economistas são unânimes em assinalar que o desabastecimento vai ser maior nos próximos meses, e a inflação também. É previsível o aumento dos saques e dos protestos, ao mesmo tempo em que o discurso vazio das falas oficiais, a repressão e as políticas erradas continuam atiçando o fogo.
A crise venezuelana é de caráter fundamentalmente político. Rompeu-se a legitimidade do governo, com minoria eleitoral, mas mantendo o controle de quase todos os poderes políticos nacionais, com exceção da Assembleia Nacional à qual sistematicamente ele marginaliza. A oposição cidadã ao governo representa a grande maioria e a oposição partidária ocupa espaços muito restritos dentro do Estado venezuelano.
A irritação e a polarização entre governo e oposição partidária é cada vez maior, o que impossibilita alcançar acordos básicos que devem existir entre a sociedade e o Estado para alcançar os fins consagrados na Constituição Nacional. Para conter a oposição, o governo atua exercendo cada vez mais uma cruel e dura repressão contra a dissidência, violando os mais elementares direitos humanos, situação denunciada por organismos internacionais. Qualquer opção de diálogo e entendimento se torna cada dia mais difícil.
Diante desta situação, a maioria da população venezuelana, para além de identificações partidárias, acredita que a opção de um referendo para o impeachment presidencial pode ser o início de um processo eficaz de transição política pacífica, democrática e constitucional. Como bem assinalou o episcopado venezuelano: “ante a gravíssima crise política do país, o referendo é a solução menos traumática e mais conveniente… e não acontecendo o referendo a crise se tornará cada vez pior”. Somos conscientes de que o impeachment é apenas um passo (que consideramos necessário na circunstância presente) de um longo e complexo caminho que requer muitos esforços de negociação, acordos e consensos para a superação da atual crise, onde todos as atores são necessários. Vemos com indignação como o Conselho Nacional Eleitoral (CNE), desde o inicio da ativação do processo de impeachment, tem claramente jogado um papel voltado para os interesses do governo, retardando os prazos, impondo normas não estabelecidas nem na Constituição nem nas leis respectivas, e maltratando o povo venezuelano ao obrigá-lo a participar em condições de extrema dificuldade.    
A última decisão do CNE sobre o processo de recoleção de 20% de aceitação é inadmissível, já que tergiversa o sentido literal do artigo 72 da Constituição Nacional, estabelecendo que esta porcentagem não é sobre o total do registro eleitoral mas proporcional à população eleitoral de cada Estado. Ademais, praticamente se estabelece o mês de março de 2017como data para que seja realizado um eventual referendo; e as condições operativas estabelecidas são muito desfavoráveis para a participação.
A Mesa da Unidade (MUD), que convoca o referendo para o impeachment, respondeu que atenderá à cita estabelecida para recolher as assinaturas, mas que não aceitava as condições impostas. Obviamente, o cenário proposto para os dias 26 a 28 de outubro, data estabelecida, será altamente conflitivo e aprofundará a instabilidade e a derrocada política.

Nossas propostas
A crise do país é de caráter orgânico, reflete em todos os aspectos da vida nacional. O corpo social avança cada vez mais para condições de vida menos humanas. A situação pode se caracterizar como violência institucionalizada e de pecado estrutural. A dignidade humana, o dom da vida e da paz,  estão gravemente ameaçados.
Neste ano centenário da presença da Companhia de Jesus na Venezuela renovamos nosso horizonte apostólico que nos propõe trabalhar na transformação superadora desta situação dolorosa, a partir do que aprendemos neste tempo de acompanhamento ao povo venezuelano, promovendo a fé e construindo a justiça que brota dela. Este é um momento especial para o discernimento vigilante e o compromisso com todos os venezuelanos e, entre eles, com os mais pobres.
Em nível pessoal é tempo de cultivar nossa fortaleza espiritual, no silêncio e na contemplação, deixar que o evangelho nos interpele diretamente e nos dê a energia necessária para adotar uma atitude perceptiva ante a realidade, e abertura ante suas exigências. É um tempo para ouvir os clamores de nossa gente e acolhê-los para apresentá-los ao Pai com a fim de responder à sua vontade de redenção na história.  
Em nossas comunidades é necessário garantir encontros para o discernimento e a deliberação sobre a realidade, e como a situação nos afeta pessoal e comunitariamente, apostolicamente, e em nossas relações familiares. Também, criar estratégias e ações que nos ajudem a canalizar adequadamente nossas preocupações com os meios de que dispomos.
Como corpo de jesuítas e leigos, agrupados em obras, setores e redes apostólicas, é necessário pensar estratégias de incidência em nossos respectivos campos de ação, promover a análise compartilhada, acompanhar nossas equipes de trabalho e as pessoas a quem servimos, e promover espaços de encontro para a ação com outros atores que realizam tarefas similares às nossas.
Uma preocupação permanente que nos deve mobilizar é a criação de planos conjuntos como Província, em união com a Igreja e sua hierarquia, assim como com outras organizações sociais, para promovermos:
• A formulação de horizontes sustentados em diagnósticos especializados e rigorosos, que permitam a formulação de políticas públicas em diferentes âmbitos, para viabilizar a orientação de nossas grandes opções apostólicas. Pensar este país e suas possibilidades é uma responsabilidade apostólica própria da Companhia de Jesus para com a Igreja e com a sociedade venezuelana.
• A defesa dos princípios democráticos e da institucionalidade, consagrada na Constituição Nacional da República, em especial dos direitos humanos.
• A atenção às vítimas da repressão política.
• A atenção à crise alimentar e de saúde, que se concretiza no apoio ao corredor humanitário proposto pela Conferencia Episcopal, entre outras iniciativas.
• O fortalecimento da convivência cidadã frente à violência disseminada em toda a sociedade.
• O acompanhamento a organizações sociais, ONG, instituições educativas, enquanto atores relevantes na construção de alternativas para o país.
• A participação em iniciativas tendentes a favorecer a superação da crise nacional, que promovam o diálogo, o reconhecimento de todos e a expressão soberana e democrática do povo venezuelano.
O momento em que vivemos nos chama a fortalecer a relação com Deus nosso Pai, seu Filho Jesus e o Espírito Santo, de quem nos dizemos seguidores e sob cuja bandeira nos fazemos construtores de seu reino de liberdade, dignidade e justiça. Que a fidelidade a nossa vocação e missão nos guiem neste discernimento permanente sobre o que devemos fazer nesta terra que tanto amamos.

Irmão em Cristo
Francisco José Virtuoso, SJ

Site dos SJ em Venezuela

Relacionados