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Perdoar não é esquecer

junho 30, 2016

No ano da Misericórdia se fala e se escreve muito sobre o perdão, a reconciliação e a dimensão política da misericórdia. Estas linhas, que recolhem quatro pontos e mais um sobre o perdão, querem ser parte dessa conversa.

1. Perdoar não é esquecer
Perdoar não é esquecer, pelo menos não necessariamente, não como imposição externa. Talvez às vezes a pessoa ofendida ou agredida, por seu momento e situação vital, escolhe esquecer como um mal menor. Propriamente, perdoar seria recuperar e sarar a memória do acontecido. Poder rememorá-lo sem os sentimentos de raiva, ódio, rancor… para poder começar de novo, para poder seguir adiante sem um futuro hipotecado e marcado permanentemente pelas feridas do passado. Porém perdoar não é negar esses sentimentos dolorosos tão naturais e compreensíveis. Muitos documentos sobre o perdão convidam a não negar os sentimentos de rechaço e dor que causa a recordação dos fatos dolorosos. Perdoar é um processo de recuperação que requer reconhecer e trabalhar esses sentimentos, que podem ser reorientados em uma força que ajude a vítima a converter-se em sobrevivente: que dizer, a ser senhora de seu passado, a decidir o que e como quer recordar o ocorrido, de modo que possa viver com sentido seu presente. Não se trata de erradicar as lembranças dolorosas, mas de dar-lhes um espaço capaz de regenerar e curar, e construir um futuro livre da hipoteca do passado. O esquecimento imposto é uma nova forma de fazer vítima quem já o é. As vítimas merecem lembrança.

2. A “vítima” deve ser protagonista
O centro do processo de perdão deve estar orientado à pessoa ou coletivo agredido, ofendido, humilhado… São as “vítimas” que iniciam este processo e marcam os tempos. São as vítimas que decidem interromper o círculo de “ofensa por ofensa” para dar-se e dar uma oportunidade para começar de novo. Etimologicamente, a palavra perdão e o verbo perdoar se referem a um exercício gratuito e “excessivo” por parte de quem o exerce. Perdoar é uma decisão proativa e de grande generosidade por parte da vítima. Nesse sentido não pode ser uma imposição “social”, não se pode urgir por conveniência política, nem se pode apressar o processo. Não se pode impor de fora a obrigação de virar a página e esquecer, com uma “política do esquecer” ou um exercício de “amnésia coletiva”. É parte do processo de perdão, e o primeiro passo para uma possível reconciliação social reconhecer a verdade do ocorrido, honrar a memória das vítimas. Isto é particularmente importante quando, talvez, toda a “restituição” que os sobreviventes podem obter é que se conheça o que aconteceu com seus seres queridos.  As vítimas devem ter um papel preeminente nas decisões que se tomem nos processos de reparação, nas medidas que se adotem para restituir a memória, e devem ser consideradas medidas ativas que melhorem sua situação socioeconômica se esta se viu atingida pelas agressões ou pela violência sofrida.

3. Perdoar não é negar a justiça ou as consequências legais.
Para que haja perdão e para que se inicie um processo de reconciliação, é necessário que se reconheça o sofrimento causado. É necessário que aqueles que o causaram peçam perdão e mostrem arrependimento por suas ações.  Sem isto, pode ser concedido o perdão? Certamente, porque depende da generosidade das “vítimas” (há um caderno de CJ com casos de perdão de familiares de vítimas de ETA, com testemunhos de perdão impressionantes neste sentido), mas não haverá um processo real de cura social, de restauração de feridas, de reconciliação. A justiça (civil, legal) nunca poderá compensar a dor causada, mas pelo menos evitará que os que a causaram continuem provocando dor, e é um exercício social reconhecer que vítima e causadores dela não estão no mesmo plano. A justiça que pede o perdão é uma justiça restaurativa, que implique a vítima, o causador dela, e seus efeitos sociais em um processo de reconciliação. Porém este processo requer, como primeiro passo, cessarem as injustiças, e reconhecê-las. Nele, as vítimas não podem ser relegadas apenas a provar que algo aconteceu. Devem ser consideradas agentes políticos ativos.

4. O perdão tem uma dimensão “social”
O presente e o futuro estão de algum modo condicionados pela experiência, e vítimas e verdugos, em certo sentido, nunca deixarão tal condicionamento. É necessária uma dimensão social e política do perdão porque a infração cometida, o delito, a ofensa, também o têm. Não sofrem somente as vítimas diretas da violência, da opressão, do bullying, dos abusos… sempre há “danos colaterais”: as famílias e as relações sociais das pessoas implicadas ficam afetadas. Por isto se requer uma cultura do perdão que vai além da conveniência política ou das restituições legais e técnicas (que são necessárias). A sociedade não pode sanar suas feridas falsamente. Parte do processo de cura, às vezes, é reabrir feridas mal cicatrizadas para limpá-las e cicatrizá-las bem. Recuperar um relato de modo mais objetivo possível, mais fiel à verdade, ajuda não somente a honrar as vítimas, mas a construir o futuro da sociedade a partir de uma base mais sólida, não com histórias parciais, normalmente escritas pelos vencedores, como nova forma de humilhação aos vencidos, ou como meio de assegurar sua impunidade. Por último, um processo político de perdão e reconciliação não pode deixar de lado os verdugos, que também fazem parte da sociedade. Para poder, no presente, libertar as vítimas da carga dolorosa do passado, é necessário envolvê-las e também inserir seus causadores no processo complexo de diálogo, reconhecimento, reconciliação e construção de um presente diferente. É necessário um processo comunitário e coletivo de cura, porque toda a sociedade pode compartilhar a dor pelo acontecimento e experimentar certo sentimento de “culpa” por ter permitido a violência, por não tê-la denunciado; ou um sentimento subsidiário de pertencer à sociedade na qual os fatos violentos ocorreram. O esquecimento não é, pois, uma opção nos processos políticos de perdão, que requerem um processo de restituição ao povo ou às pessoas afetados.

4 +1. A dimensão cristã do perdão
Muito brevemente acrescentar a perspectiva da tradição cristã relacionada ao perdão. A raiz do perdão cristão não é outra senão a experiência de termos sido perdoados por Deus. Somente Deus é compassivo e misericordioso. O que crê ter sido tratado com misericórdia sente-se urgido a perdoar. É o convite de Jesus: “Sede perfeitos como vosso Pai Deus é perfeito”… sede compassivos, sede justos, sede misericordiosos, porque vosso Pai Deus vos tratou com misericórdia. São múltiplos os textos do Evangelho em que Jesus age com a misericórdia e o perdão de Deus, e dá exemplo a seus discípulos. O perdão de Jesus se situa acima da lei religiosa de sua época, porque a lei não pode conter as entranhas misericordiosas do Deus da vida. Porém o perdão religioso, cristão, não anula a justiça civil. Ele a complementa, a acompanha, a situa e a supera. O perdão religioso pode ser um processo interno da pessoa que lhe permite iniciar e acompanhar processos de perdão e reconciliação social. Pode ser um exercício da vítima e do verdugo de perdoar e de pedir perdão respectivamente. Em última instância, falando cristãmente, o perdão é renunciar ao direito à justiça última (não a terrena e penúltima) nas mãos de Deus. É renunciar a se vingar, a odiar, a guardar rancor. É, em Deus, dar a oportunidade à outra pessoa de se refazer, de nascer de novo.

Por Chema Segura sj
Publicado em “Cristianismo y Justicia”

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